Decifrando o voto em Dilma
By Gustavo Noronha
Há várias razões compreensíveis para se votar em Dilma: mesmo que eu discorde delas ou da importância relativa, são motivos razoáveis. Já algumas justificativas para o voto, que listo abaixo, não me parecem fazer sentido.
O voto de agradecimento
Essa justificativa geralmente envolve tecer algum elogio a conquistas que ocorreram principalmente desde 2003: o fato de que houve melhorias significativas vindas de governos do PT seria razão suficiente para dar mais 4 anos a Dilma.
Essa motivação desconsidera principalmente o fato de que o maior responsável por essas melhorias foi o governo Lula, que é quem merece o agradecimento, não Dilma. Por mais que se diga que Dilma é um governo de continuidade, os fatos teimam em discordar: houve mudanças significativas na condução da política econômica e tudo indica que as melhorias na questão da miséria e da desigualdade, se não tiveram piora, estagnaram.
A queda do índice de Gini desacelerou a partir de 2011, ficando praticamente estagnado, depois de queda significativa desde 2001. Na reta final para o segundo turno, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), ligado à Presidência da República, decidiu não divulgar sua interpretação da PNAD, que aparentemente indica que a miséria no Brasil não só parou de cair como teve pequena alta. Dilma, que como candidata prometeu a erradicação da miséria, falhou nessa meta como presidente.
É aí que entra a estratégia, usada por campanhas e militantes, de nunca considerar Dilma separadamente e sempre falar de Lula junto: sob as vitórias do período Lula, as falhas de sua sucessora ficam mais difíceis de ver. O agradecimento através do voto acaba sendo a um período anterior e não à candidata que o recebe.
O voto religioso
Esse é o voto de pessoas que historicamente apoiam o PT e que geralmente acreditam que qualquer que seja a mudança nas defesas e práticas do partido e seus candidatos, é sempre a melhor opção. Nesse tipo de voto nós encontramos um discurso que geralmente remete a um passado de luta que lá no fundo ainda move a pessoa, mesmo que as atitudes mostrem o contrário.
Li dois textos muito bons para exemplificar esse caso: a jornalista Cynara Menezes escreveu no seu blog Socialista Morena um texto intitulado A aposta no papel histórico de Dilma, em que reconhece o fato de que o crescimento da força política do fundamentalismo foi resultado do abandono pelo PT da sua histórica defesa das questões progressistas de gênero e LGBT.
Basta olhar com boa vontade para o primeiro mandato de Dilma para ver que de fato não houve avanço algum e que, pelo contrário, houve retrocessos palpáveis, com o cancelamento do kit anti-homofobia, tratado pelo governo como “propaganda de opção sexual“, a revogação da portaria que regulamentava no SUS os abortos nos casos já previstos em lei, a eleição de Feliciano à Comissão de Direitos Humanos da Câmara.
Cynara argumenta que apesar de todos esses recuos, Dilma merece a chance de mudar num segundo mandato, o que ela acredita que acontecerá em razão da defesa histórica feita pelo PT dessas causas. É só essa crença dogmática no peso do papel histórico do PT que explica, do meu ponto de vista, o fato de que entidades LGBT e feministas apoiem a candidatura Dilma depois de terem tido suas causas rifadas e desprestigiadas. Quem capturou bem essa postura de defesa incondicional do partido foi o Luis Eduardo Soares, em seu relato Conversa de segundo turno.
O voto do medo
Nessa motivação se juntam aqueles que acreditam que governos do PSDB fazem mal ao país. Geralmente vem acompanhados de críticas a uma suposta falta de prioridade dada à questão social durante o governo FHC na década de 90, a acusações de preferir atender a interesses de uns poucos ricos em detrimento do interesse de todos e de preferir controle de inflação a garantia de empregos.
Para a questão da inflação vs emprego, geralmente os defensores desse voto tendem a ver uma relação inversa entre a taxa de inflação e a taxa de emprego: se você tenta reduzir inflação, aumenta o desemprego. Ignoram, porém, dois fatores: a economia não vê relação de longo prazo entre as duas taxas. O que há é uma relação de curto prazo entre a taxa de juros e a atividade econômica, que estando baixa levaria ao desemprego. Esquecem de considerar essa triste realidade: nós já estamos com baixa atividade econômica e já estamos sofrendo uma piora da criação de postos de trabalho, com aumento de desemprego batendo à porta, então temos o pior dos dois mundos.
Esquecem de considerar também o sucesso que Lula teve em reduzir a inflação no seu primeiro mandato, usando exatamente as mesmas ferramentas estabelecidas pelo governo FHC, com redução significativa da taxa de desemprego vindo em seguida.
No caso da questão social, fica difícil manter esse argumento quando se olha os dados: Samuel Pessoa demonstrou em artigo que o crescimento do gasto social é uma realidade desde a redemocratização, incluindo aí o governo FHC, que inclusive aumentou a carga tributária para ampliar o investimento social. Eu também mostrei que a política de valorização do salário mínimo começou com FHC. Foi o governo FHC que criou programas como o Benefício de Prestação Continuada, que dá renda mínima a idosos, assim como o Bolsa Escola e o Cadastro Único da Assistência Social, que foram utilizados na formatação e na criação do Bolsa Família.
Foi durante o governo FHC que se colocou como meta universalizar o acesso à educação fundamental, meta que foi alcançada! Foi também durante esse período que se estabeleceram várias soluções para a operação do SUS, com normas operacionais básicas fundacionais importantes que permitiram a descentralização preconizada pela Constituição e a viabilização e expansão de programas importantes como o Programa Saúde da Família, que havia sido criado em 1994.
Quem fala de defender interesses de uns poucos ricos ou de defender Estado mínimo, certamente não conhece o PROER, que foi a legislação criada em 1997 para resolver o problema de bancos que tiveram problemas financeiros quando perderam a ajudinha que tinham da inflação e da desregulação do sistema bancário.
Para evitar que bancos quebrassem em série causando prejuízo à população e ao país, as leis do PROER fizeram com que os donos dos bancos fossem responsabilizados pelos rombos nas instituições: os ricos donos de bancos tiveram que usar seu próprio dinheiro para cobrir os depósitos feitos pela população. Foi essa sólida regulação do sistema bancário que ajudou o país a passar pela crise de 2008 sem crises bancárias, inclusive, de acordo com o próprio presidente Lula.
Normalmente se esquecem de considerar a situação em que o Brasil se encontrava em 1994: uma economia que vinha de um período longo de hiperinflação, que tinha sofrido havia poucos anos um confisco das poupanças, com uma agenda de reformas urgentes por fazer, sem credibilidade internacional, sem acesso a crédito, sistemas bancários frágeis. O governo FHC lidou com muitos desses problemas durante seus dois mandatos, mesmo sob uma chuva constante de crises internacionais que afetavam o Brasil.
Crises essas que costumam ser minimizadas pelos defensores desse voto, inclusive: a de 2008 foi muito mais profunda e ampla. Não discordo deles nesse fato, mas tudo é contexto: com uma economia saneada e bem regulada na década de 90 e com vários anos de bons ventos internacionais, era de se esperar que o Brasil resistisse muito melhor a uma crise internacional do que era possível na década de 90. Imagine uma pessoa que acaba de se recuperar de uma grave doença. Essa pessoa ainda estará fragilizada, ainda terá mais chances de pegar uma gripe e será mais impactada pela infecção. Se a gripe vier depois de alguns anos de recuperação, estará mais saudável, não sentirá tanto.
É essa falta de atenção ao contexto que permeia os argumentos do voto do medo. O interessante é que é justamente ao contexto que recorrem os defensores desse voto para explicar o baixo crescimento da economia. “É a crise internacional!”, dizem, mesmo diante dos fatos que mostram que o mundo já se recupera enquanto o Brasil piora.
Conclusão
Me parece que esses votos, que considero irracionais, são resultado de uma idealização e desconexão com a realidade: as pessoas defendem visões que vem das décadas de 80 e 90 e que não encontram sustentação na realidade. Fecha-se os olhos numa cegueira partidária, que idealiza a candidata petista, se apega a um histórico positivo como razão para ignorar os erros do presente. Que quer ver o adversário como inimigo, se negando a reconhecer que os tempos e as propostas são outros, mas mais importante: que houve sim grandes contribuições do partido adversário para que o Brasil obtivesse tantas conquistas nos anos Lula. Vote consciente.