Emmanuel Goldstein vive
By Gustavo Noronha
Emmanuel Goldstein vive
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Tico Santa Cruz postou recentemente no Facebook <a href="https://www.facebook.com/ticosantacruz/videos/743858885746754/" rel="nofollow" data-href="https://www.facebook.com/ticosantacruz/videos/743858885746754/">um vídeo</a> do filme <em>O Substituto</em> em que o professor dá uma aula sobre conceitos de assimilação, ubiquidade e dupli-pensar, este último do livro 1984. A ideia que o professor passa é que existe uma narrativa dominante da qual devemos nos libertar (ou desalienar, palavra da moda tempos atrás) para que nossas consciências não sejam esmagadas.
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1984 é talvez o romance distópico mais famoso do mundo. Mesmo quem nunca leu o livro já se deparou com conceitos que saíram dele como o Grande Irmão (Big Brother) e dupli-pensar. O autor do livro, Eric Arthur Blair, mais conhecido por seu pseudônimo George Orwell, era um ávido defensor do socialismo.
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Mas não a corrente autoritária do socialismo: queria um socialismo democrático. Daí as críticas feitas por ele em Revolução dos Bichos, escrito antes de 1984, a regimes socialistas que se tornam oligarquias e o aviso do que poderia se tornar o mundo caso o socialismo totalitário nos moldes stalinista ou maoísta vencesse, com 1984.
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Tico Santa Cruz postou o vídeo como uma forma de criticar o ódio anti-petista que tem ficado cada vez mais forte no país. Uma certa dose de revolta com o partido se justifica, claro: antes tido como o defensor da ética na política, o partido, através de sua cúpula, montou claramente uma estrutura criminosa para sua própria manutenção no poder, com o chamado mensalão.
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Quem diz isso nem sou só eu. Carlos Ayres Britto, presidente do STF quando foi julgado o mensalão também diz. Britto foi petista e candidato pelo PT à Câmara no passado e repetiu isso em várias oportunidades durante e depois do julgamento da AP470. E tudo indica que o esquema tenha sido ampliado e espalhado pelo Estado como câncer em metástase.
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Então, sim, o PT merece que o condenemos por ter feito essas coisas, precisa ser punido e ter suas partes podres removidas da política.
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Mas isso não justifica de maneira nenhuma atacar pessoas em momentos de dor e sofrimento como fizeram no velório do Zé Dutra, dizendo que <a href="http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,petista-bom-e-petista-morto--diz-panfleto-atirado-em-local-de-velorio-de-dutra,1774673" rel="nofollow" data-href="http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,petista-bom-e-petista-morto--diz-panfleto-atirado-em-local-de-velorio-de-dutra,1774673">petista bom era petista morto</a>. Isso é barbárie. Nem faz sentido negar que há forças na sociedade que são representadas por correntes internas do partido que não se corromperam. Por isso mesmo acho bastante válida a crítica dele e concordo plenamente que faz mal para o país demonizar uma força política.
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Mas gostaria de propor uma reflexão e para isso vou falar um pouco mais sobre 1984.
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1984 retrata um super-país chamado Oceania, formado pelas Américas e o Império Britânico. A capital é a Inglaterra pós-revolução em que um único partido, o Socialismo Inglês (ou IngSoc), comanda um Estado totalitário.
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Há uma polícia de pensamento que impede que as pessoas discordem do governo, livros são basicamente proibidos, crianças são ensinadas nas escolas a procurarem sinais de pensamentos “incorretos” em seus pais e vizinhos e a denunciá-los à polícia de pensamento. Para controlar o pensamento das pessoas e subjulgá-las, o Ministério da Verdade reescreve a história, inclusive notícias de jornais ao sabor das necessidades do Partido.
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É nesse contexto que aparece o dupli-pensar, citado pelo professor do filme: as pessoas são treinadas a acreditarem em afirmativas contraditórias como se ambas fossem verdades inquestionáveis e sem sentirem qualquer desconforto com isso. Ao ponto de mudarem quem são os aliados e inimigos na guerra mundial perene sem que a população ache estranho. Se ontem Eurasia era a inimiga e hoje é aliada, não se questiona: Eurasia sempre foi aliada. Se alguém disser que Eurasia era inimiga precisa de uma sessão de “ajustamento” (leia-se tortura física e psicológica) no Ministério do Amor (sim, o nome é esse mesmo).
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Mas talvez mais importantes do que as formas de indução a essa crença quase religiosa no partido seja a criação e constante lembrança de inimigos reais ou imaginários, usados pelo Estado para manter constantemente a noção de nós contra eles. A guerra perene é usada para justificar toda sorte de mazelas sociais e há até um suposto movimento terrorista que pretende sobrepor o Partido chamado de “A Irmandade”.
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O líder dessa irmandade, Emmanuel Goldstein, é usado pelo Grande Irmão para representar o principal inimigo da sociedade, que estaria constantemente na iminência de uma ação destrutiva. O povo de Oceania participa diariamente de uma sessão de catarse chamada de “2 minutos de ódio” em que imagens de Goldstein são projetadas num telão enquanto todos gritam xingamentos e deixam a raiva fluir.
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O resto deixo pra você ler, se não já tiver lido. Recomendo muito: é provavelmente o livro mais marcante que já li na vida e tem uma trama sensacional.
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1984 é uma ótima fonte de metáforas para o fla x flu que o debate político no país se tornou. Tico tem razão de que muitas pessoas deixaram de lado a razoabilidade e a civilidade para praticar momentos de “2 minutos de ódio” contra Lula, Dilma, o PT e os petistas.
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Mas Lula e o PT não são os únicos Goldsteins do debate público do país. FHC, Aécio, Serra, o PSDB estão lá ao lado de Lula, como os Goldsteins preferido dos petistas. FHC então, coitado, 13 anos depois de ter deixado o governo ainda é lembrado como se tivesse culpa da situação das telecomunicações. É a definição do que é governo ruim, destruidor de mundos.
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Do mesmo ambiente torpe de debate que vem o anti-petismo irracional vem também o anti-tucanismo irracional e o petismo boçal que ignora a realidade em nome do partido.
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O professor do filme nos lembra que há uma enxurrada de informação enlatada que nos é empurrada constantemente pela mídia e outros entes sociais: religião, Estado, família com o objetivo de nos alienar. Eu concordo, mas adicionaria que tão importante quanto saber fugir desse enlatado<em>mainstream</em> é não se deixar ser capturado por outro conjunto de ideias enlatadas e tão embuídas de preconceitos ideológicos quanto aquelas.
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Quando se defende acriticamente que Dilma era a única opção possível, inquestionavelmente melhor que o PSDB, sem olhar para a realidade, isso é também comer um enlatado sem questionar. Pode ser que seja verdade? Até poderia ser, mas bastava ver que Dilma deixou minguar o Bolsa Família, principal contribuição dos governos petistas, uma evolução do Cadastro Único e Bolsa Escola, ambos herdados do governo FHC.
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<canvas width="75" height="42"></canvas><img alt="" src="https://cdn-images-1.medium.com/max/800/1*teiUxwLcNFXA2q73Z-Xy0Q.png" data-src="https://cdn-images-1.medium.com/max/800/1*teiUxwLcNFXA2q73Z-Xy0Q.png" />
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</div><figcaption>Governo Dilma começa com o BF valendo 6% menos do que quando criado e já chega a mais de 20% de perda, mesmo com o aumento de 2014.</figcaption></figure>
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<canvas width="75" height="45"></canvas><img alt="" src="https://cdn-images-1.medium.com/max/800/1*0liTbPNyxcq-pCB2a7t5mg.png" data-src="https://cdn-images-1.medium.com/max/800/1*0liTbPNyxcq-pCB2a7t5mg.png" />
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</div><figcaption>Percebe-se claramente no gráfico o descolamento do valor do Bolsa Família da inflação a partir de 2011.</figcaption></figure>
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Basta lembrar que Dilma pouco se importou com causas históricas do partido como a demarcação de terras indígenas e reforma agrária. Ela não foi só ruim, <a href="https://medium.com/@gustavokov/era-uma-vez-os-movimentos-sociais-b0e34f076c1d" data-href="https://medium.com/@gustavokov/era-uma-vez-os-movimentos-sociais-b0e34f076c1d">Dilma foi muito pior que o principal parâmetro usado por petistas para o que é ser ruim</a>: FHC. Sem falar em questões de gênero, LGBT, entre outras, em que ela não avançou um milímetro.
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E em nome de quê? De construir projetos gigantescos em terras indígenas sem respeitar minimamente as populações locais? De investir até dinheiro que não tínhamos em fontes poluentes de energia, deixando totalmente de lado a questão ambiental? Sobrou o quê, afinal, do governo pretensamente de esquerda?
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Quando se ignora a realidade e se começa a acreditar acriticamente que um grupo sempre é melhor, mesmo que ele mude completamente, o que você fez não foi só se desalienar do discurso <em>mainstream.</em> Foi se realienar com outro discurso, tão enlatado e preconceituoso quanto.
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Tico Santa Cruz está certíssimo em recomendar essa reflexão sobre o anti-petismo irracional. Espero que ele também reflita sobre a racionalidade das suas próprias defesas.
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É importantíssimo questionar o pensamento enlatado que nos é fornecido pelos poderosos e pela mídia, pela família e pelas escolas. Mas não adianta nada se no processo entregarmos nossa consciência a outro enlatado de pensamento. Questionar tudo, inclusive a si mesmo, sempre, pensar por si mesmo, é o único caminho para não ser massa de manobra de ninguém.
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