Quando os papéis se invertem
By Gustavo Noronha
Há muitas semelhanças e muitas diferenças entre os segundos mandatos de Fernando Henrique Cardoso e Dilma Rousseff. Os dois presidentes começaram o novo mandato com queda significativa de popularidade, ao terem que finalmente desligar os custosos aparelhos que mantinham a economia saudável de forma artificial.
Na esteira da baixa popularidade, ambos viram crescer manifestações de rua: no caso de FHC puxados por organizações ligadas ao PT como a CUT, no caso de Dilma iniciados por movimentos não ligados à política tradicional e movimentos sociais. Os dois também viram surgir movimentos pró-impeachment.
Em 1999, FHC e seus aliados, incluído aí o atual Senador Aécio Neves, defendiam o governo acusando os que pediam impeachment de golpistas que não aceitavam o resultado das urnas. Já a oposição defendia que golpe mesmo teria sido FHC manter a situação artificialmente boa para se eleger. Além disso, procuravam motivos que servissem de justificativa legal.
Quem se interessa por refrescar a memória vai ver que os papéis da oposição e situação, pelo menos no que diz respeito à retórica sobre impeachment, estão quase perfeitamente espelhadas. Hipócritas, ambos, igualmente toscos.
Mas e nas ações, estão também igualmente espelhados?
Em várias discussões que tive no Facebook houve a defesa da tese de que não: que o PSDB está sendo hoje bem mais irresponsável que o PT foi à época. Os argumentos são geralmente focados em 3 pontos principais;
- O PSDB estaria sendo mais afoito que o PT foi em 99, forçando um impeachment sem ter um motivo legal configurado
- Que seria golpismo independentemente de haver ou não motivo porque se teria decidido pelo impeachment a priori e só então buscado o motivo e que o golpismo estaria sendo liderado pelo PSDB
- Que lideranças importantes do PSDB como Aécio Neves fustigam o impeachment ao invés de colocar freios, geralmente citando o papel que Lula e Dirceu tiveram em segurar as rédeas enquanto partes da bancada petista se conflagravam
Eu discordo e vou tentar explicar por quê. Para subsidiar ainda mais meus argumentos, gostaria de recomendar o vídeo que resgata discursos importantes feitos durante a votação de um recurso que pedia abertura do processo de impeachment em 1999.
Em primeiro lugar, o PSDB não assumiu ainda oficialmente a defesa do impeachment. Aécio, como presidente do partido, nunca falou que está na hora de instaurar o processo. O que ele repete insistentetemente é que há processos correndo no TCU e no TSE e que é importante que os fatos sejam apurados lá e que o funcionamento das instituições seja garantido.
Não há como se falar ainda em forçar impeachment por conversas de bastidor. O PSDB, diferentemente do PT em 99, não apresentou pedido de impeachment nem defendeu oficialmente nenhum deles ainda.
Em segundo lugar, basta ver o vídeo para notar que não havia prova clara de cometimento de crime de responsabilidade por FHC: o próprio José Dirceu, ironia das ironias, chega a dizer que não era necessária prova para condenação de FHC, já que era óbvio o desvio de conduta. É bom lembrar que Dirceu era o presidente do PT na época.
E essa também não foi a primeira vez, e FHC não foi só vítima direta: o então deputado petista Jaques Wagner, hoje Ministro da Defesa e cotado para a Casa Civil, entrou com pedido de impeachment contra Itamar Franco por discutir uma medida provisória com o candidato do governo, em 1994. E o objetivo não era tirar o presidente! Foi uma clara manobra para ganhar as eleições contra FHC no tapetão, já que só restava 6 meses de mandato para Itamar.
Dá pra dizer que o PSDB está sendo mais afoito que o PT foi? Nem perto. E com o que eu disse acima eu acho que também fica bem claro que Aécio e FHC de maneira alguma ultrapassaram o que Dirceu e Lula representaram no governo FHC com relação impeachment.
Enquanto o PT pedia impeachment por qualquer coisa e seu presidente defendia a remoção do presidente na tribuna do Congresso, Aécio e FHC estão todo santo dia dando declarações de que não há ainda motivos para impeachment e o PSDB sequer protocolizou pedido de impeachment. A situação pode mudar, mas por enquanto é essa.
Com isso acredito que ficam vencidos os pontos 1 e 3. E quanto ao 2?
Bom, eu acho esse um bom argumento, embora não necessariamente concorde que é o caso atualmente. Como meu amigo Fabrício Vasselai sempre nos lembra, não precisa ser ilegal para ser golpe. O problema pra mim é que se for pensar assim qualquer impeachment será golpe.
No Brasil, infelizmente, a única coisa que impede impeachment de todo presidente parece ser não a vontade das oposições, mas sim a dificuldade de conseguir a justificativa legal que dê ao processo o verniz de legitimidade necessário e os votos que o efetivem. Todos os presidentes desde a redemocratização governaram sob pedidos constantes de impeachment, inclusive Lula! O impeachment à espera dos motivos e dos votos está aí desde 1990 e o PT foi o principal usuário dele.
Agora, quanto a dizer que o PSDB lidera essa ideia nos dias de hoje, acho difícil argumentar. O PSDB cumpriu seu papel de oposição de ir à justiça naquilo que considera errado para colocar o governo contra a parede, e o partido do governo tem feito o mesmo, como é de se esperar. Também é fato que alguns deputados do PSDB estão fazendo discursos pró-impeachment e apoiando um movimento para atiçar a ideia na opinião pública, como os do PT faziam também.
Mas, como foi dito anteriormente, o PSDB não defendeu oficialmente o impeachment em nenhum momento ainda e, mais importante, não protocolizou nenhum pedido de impeachment nem defendeu nenhum oficialmente. Um dos autores do pedido de impeachment de Dilma mais famoso no momento, Hélio Bicudo, foi fundador do PT.
Na entrevista que deram nesta semana ao Roda Viva, Bicudo e outra autora, Janaína Pascoal, não pouparam críticas à oposição em geral, e a Aécio e FHC em particular, por não se esforçarem pelo impeachment! A verdade é que perto do empenho do PT pelo impeachment nos anos 90, que pode ser visto no vídeo mencionado acima e na quantidade de pedidos de impeachment protocolizados, a postura do PSDB é acanhadíssima. Acho que fica demonstrado que falta substância a essa parte do ponto 2.
Conclusão: o que dá pra dizer hoje sobre a oposição é que há uma movimentação preliminar pelo impeachment por alguns parlamentares, enquanto as grandes lideranças colocam freios. Qualquer discussão mais concreta só está acontecendo nos bastidores e está longe do tipo de posicionamento que o PT teve nas tentativas contra FHC.
Isso não significa que o que a oposição está fazendo é de natureza diferente ao que o PT fez à época. Nem mesmo tenho interesse de justificar ou defender o PSDB. Não há santos, demônios ou inocentes nesse jogo. Acho que é importante ser coerente e usar a mesma régua para os dois.
O que eu pretendo com toda essa argumentação é justamente contrapor a tentativa de usar réguas diferentes e fazer parecer que o PT foi de alguma forma mais correto, menos afoito, menos golpista. É demonstrar que se você acha que o PSDB está indo contra Dilma além do que o PT foi contra FHC, você provavelmente não conheceu ainda a história toda do que foi o PT na década de 90.