Uma defesa do PL da terceirização
By Gustavo Noronha
Está na pauta do país no momento o debate sobre a terceirização. Essa modalidade de contratação não é regulamentada na nossa legislação atual, o que há é um entendimento do TST de que só é lícito terceirizar atividades meio, ou seja, aquelas que são suporte para a atividade foco do negócio. Há, no entanto, uma série de questões que sofrem com o vácuo legislativo.
Por exemplo, uma empresa que desenvolve software pode terceirizar limpeza, segurança, manutenção, gerenciamento de rede dos escritórios. Não pode terceirizar programação e controle de qualidade do software que desenvolve. Ou pode? Há quem diga que teste não faz parte da atividade fim e que é só uma atividade suporte.
Eis um dos problemas com a nossa atual situação: a própria definição do que compõe a atividade fim de uma empresa é difícil e cria insegurança jurídica. Pode ser que você esteja terceirizando algo que a justiça vai decidir que é parte da sua atividade fim. Daí a necessidade de uma lei que regulamente e explicite o que pode e o que não pode.
Achei despolitizante a forma como o debate tem sido interditado, com apelos a exageros retóricos, binarismo e maniqueísmo. Acredito ser muito importante pensar nas novas formas de trabalho que a evolução das comunicações e da gestão trouxeram e acho que fazer desse assunto um tabu é um erro.
Vi gente dizer por exemplo que esse projeto seria o fim da CLT. Não será: ainda que todas as empresas demitissem todo mundo para contratar terceirizados no lugar (o que acho difícil acreditar que acontecerá), as empresas terceirizadas terão que contratar na CLT. E não concordo com as avaliações de alguns que todo mundo viraria “pejotinha” – criar uma empresa com somente uma pessoa para evadir a CLT. A legislação trabalhista já proíbe a prática e nada nesse projeto a torna permissível.
Algo que também me preocupa é o foco das discussões estar sempre em empregos de baixa produtividade e ignorando as implicações mais gerais para o avanço da economia brasileira. Será que não deixamos de avançar num tema que pode estar atrapalhando o Brasil a se aproveitar das mudanças por que o mundo e o mundo do trabalho tem passado?
Pesquisando sobre a questão tomei conhecimento de duas coisas muito importantes que acho que tem ganhado pouco destaque no debate. A primeira é que os números que vem sendo utilizados no debate (que terceirizados ganham 25% menos e se acidentam mais, por exemplo) são de uma pesquisa com grandes problemas metodológicos. Para se ter uma ideia, ao invés de comparar as mesmas atividades quando terceirizadas ou não, a pesquisa compara atividades “geralmente terceirizadas” com atividades “geralmente não terceirizadas”. Ao invés de comparar pedreiros com pedreiros, compara pedreiros com engenheiros. Há uma pesquisa vindo aí com mais rigor que mostra resultados bem diferentes, recomendo esse texto dos autores n’O Gusmão.
A segunda é que a única norma legal sobre a terceirização está prestes a cair. Essa norma é a súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho que definiu que só pode ser terceirizada atividade meio. O STF está decidindo sobre a validade da súmula 331 e já tem inclusive maioria formada para derrubá-la. O entendimento é que não há em lei nada que impeça a terceirização de qualquer atividade e que a é inconstitucional.
Em outras palavras: quem quer que a terceirização não seja completamente liberada precisa que um projeto de lei seja aprovado dizendo isso. Engavetar o projeto atual pode ser um tiro no pé, mais sensato torná-lo uma lei que define melhor o que pode e o que não pode ser terceirizado.
Outra coisa interessante é que a súmula é de 2011, ou seja, só passou a valer já no governo Dilma. O entendimento não existia nas duas décadas anteriores e o mundo não veio abaixo.
Agora um pouco sobre minha experiência pessoal. Em 2006 e 2007 eu fui terceirizado no Ministério do Desenvolvimento Social. Como o MDS não conseguia fazer um contrato de terceirização que passasse pelo crivo do TCU, nós funcionários passamos por vários contratos de várias empresas terceirizadas. Eu fui contratado por um detentor de cargo de confiança, reportava pra ele, trabalhava dentro do Ministério e praticamente nem conhecia a empresa que me contratava. A cada 6 meses, prazo máximo de um contrato emergencial no setor público, nós éramos demitidos e recontratados pela nova empresa.
Isso não era bom para os funcionários, você deve imaginar: como nunca completávamos 1 ano de trabalho na mesma empresa, não tínhamos direito a férias, por exemplo. O projeto de lei que está em discussão no Congresso permite explicitamente essa contratação em série por empresas diferentes mantendo alocação do funcionário na contratante, o que pode ser bom ou ruim dependendo de como você olha pra a questão.
Mas o projeto inova ao colocar explicitamente a contratante como responsável subsidiária pela garantia dos direitos trabalhistas. No meu entendimento, isso significa que o MDS seria obrigado a garantir o direito a férias independente das demissões e recontratações. Ponto pro projeto. Isso inclusive resolveria mais facilmente a treta que virou o Comperj: empresas terceirizadas da Petrobrás faliram e deixaram os trabalhadores sem direitos trabalhistas.
O PL coloca a Petrobrás como responsável por garantí-los e inclusive a reservar um percentual do valor do contrato para isso. Há quem ache que a responsabilidade não deve ser subsidiária, que significa que a contratante é cobrada se a contratada falhar, mas solidária, que significa que responde juntamente. Há uma emenda inclusive para tornar a contratante a responsável primária.
Mas tem uma exceção: a União está isenta da obrigação. Hah, ponto negativo pro projeto. Considerando que muitos dos exemplos que as pessoas deram nas conversas que tive até agora envolviam órgãos ou empresas da União – MDS, Caixa, Petrobrás, TJ-RN – lá está grande parte da vulnerabilidade dos terceirizados e não faz sentido isentá-la. O PSDB propôs e conseguiu aprovar uma emenda que proíbe terceirização de atividade fim em autarquias e empresas públicas e de capital misto, como a Petrobrás. Pode ser uma forma de reduzir esse ponto negativo.
Voltando ao exemplo da empresa de software: nessa área é bastante comum pessoas trabalhando de casa. E nada impede que sejam pessoas de todo canto do mundo. A Collabora, empresa pra que eu presto serviço, por exemplo, tem sede em Cambridge na Inglaterra. Uma das nossas concorrentes (e parceira em muitos projetos!), a Igalia, tem sede em A Coruña, na Espanha.
Ambas as empresas adotam a política de não exigir que as pessoas que contratam se mudem para onde há escritórios. Isso faz com que elas possam contratar os melhores desenvolvedores nas áreas em que a empresa atua independentemente de se estão dispostos a se mudar. Alguém que não queira sair do Brasil, como é meu caso, pode trabalhar de casa tranquilamente.
A legislação que dá suporte pra algo desse tipo de acordo com uma amiga que entende de direito trabalhista é o decreto-lei 691 de 1969, criado com base nos poderes dados ao executivo pelo AI 5. Não está claro para mim que esse modelo poderia ser utilizado por uma empresa como a Collabora, já que o decreto fala em provisoriedade, que não é o caso (mesmo que os contratos tenham termo definido) e que fala também que o serviço deve ser prestado no Brasil. Ainda tenho dúvidas a respeito de se esse tipo de contrato pode ser visto como terceirização da atividade fim.
Se eu estiver errado por favor me corrijam, mas no meu entendimento não é possível criar uma empresa aqui no Brasil que consiga aproveitar com segurança jurídica os melhores desenvolvedores do mundo onde quer que eles estejam. Se for o caso, é só mais um item na imensa lista que torna o Brasil um dos piores lugares pra inovar. Abrir uma startup aqui pra quê? Melhor abrir em San Francisco ou em Londres, onde esse novo modelo de trabalho é possível.
Usando ainda a Collabora como exemplo: nós temos um certo foco em determinadas tecnologias, mas vez ou outra pegamos um projeto grande que tem partes menores em que não somos especialistas. Nesses casos, não faz sentido contratar alguém: não queremos nos especializar naquela tecnologia e não sabemos se teremos uso pra alguém que o seja depois daquele projeto. Se contratássemos alguém, haveria grandes chances de que essa pessoa fosse demitida assim que o projeto acabasse.
A alternativa que usamos é subcontratar. E é subcontratar para nossa atividade fim: desenvolvimento de software. Contratamos uma empresa especialista naquela tecnologia para fornecer desenvolvedores que são integrados temporariamente ao nosso time para desenvolver aquela parte do projeto.
Ao fim do projeto, o desenvolvedor continua empregado, na empresa especialista, bom pra ele, e nós não temos que nos preocupar com ter alguém redundante que precisa ser retreinado ou mandado embora, bom pra nós. Aqui no Brasil não teríamos essa alternativa.
Ter a possibilidade de subcontratar fez com que a Collabora tivesse menos funcionários ou precarizasse a relação de trabalho dos que contrata? Não. Que eu saiba o Reino Unido não degringolou para o caos por causa desse liberalismo nas políticas de contratação e, pelo contrário, é capaz de aproveitar bem melhor as sinergias de um mercado de trabalho complexo e moderno.
Acho que vale a pena olhar para essa questão com menos paixão e preconceito, comparar com o que existe no mundo e ler o que de fato está escrito no projeto e nas emendas propostas. Dica: não tem lá o fim da CLT, muito menos tortura e escravidão como li por aí. Tratando a questão de forma superficial podemos estar perdendo uma oportunidade de melhorar a vida dos trabalhadores que já vivem a terceirização das atividades meio. Talvez mais importante para nosso desejo de ser o país do futuro, a capacidade do Brasil de se modernizar.