A atitude filosófica
By Gustavo Noronha
Desde criança eu fico às voltas com questões de política, economia e política pública. É claro que a complexidade das coisas sobre as quais eu pensava e a qualidade das reflexões avançaram conforme eu obtinha mais informações, mas sempre gostei de refletir.
Por que o governo não imprime dinheiro e dá pra todo mundo? Devemos ou não dar esmola? Lembro de ver o Lula defendendo a moratória da dívida, pedir à minha mãe pra explicar do que ele falava, ficar em conflito interno por muito tempo tentando decidir se concordava ou não.
Já adolescente eu encontrei um livro que gostei muito de ler: “Convite à Filosofia” da Marilena Chauí. Li o livro todo com uma vontade danada e não acho que entendi tudo, mas me marcou muito o primeiro capítulo, que fala da atitude filosófica.
Ter uma atitude filosófica significa ter uma atitude questionadora, dar um passo atrás e fazer perguntas que vão além do superficial. Uma atitude crítica, que nega o senso comum, o que todo mundo diz, uma reflexão que é radical por colocar em questão suas próprias convicções.
Procuro continuar usando essa reflexão auto-crítica sempre, revendo o que eu aprendi, revendo o que me disseram e o que eu acredito. Por isso mesmo valorizo tanto o debate: oportunidade para ver minhas convicções desafiadas e argumentos contrários que posso usar nos meus questionamentos. E acho que é isso que tem faltado a uma porção significativa da esquerda brasileira, que ainda se apega à infalibilidade do PT.
Pessoas que não passam da superficialidade do discurso fácil, enlatado, fornecido por sua força política preferida. É a turma que gosta de repetir que a Vale foi vendida a preço de banana sem conhecer praticamente nada sobre o processo de privatização, sem questionar: será que é isso mesmo? O equivalente de esquerda da turma conservadora que acha que Bolsa Família torna as pessoas preguiçosas ou as faz querer encher a casa de filhos. Cadê os dados, cadê os argumentos, vamos questioná-los.
A sensação que tenho é que o partido se tornou de tal forma parte do que define as pessoas, que negá-lo seria negar a si mesmos. Na casa do meu avô um dia ele reclamava das minhas tias que mudaram de religião algumas vezes. Disse pra mim e minha mãe: “Eu acredito na Igreja Católica, nasci assim, cresci assim, não importa se estiver errado, se isso mudar eu não sou mais eu.”. É o que me parece que acontece com alguns defensores incondicionais do PT.
As pessoas se agarram a todo tipo de racionalização, claro, não vão admitir que é uma questão de identidade. Alguns querem ver no PT um monopólio da justiça social: só o partido seria preocupado com isso. Não importa que o governo anterior tenha feito muito e que as mudanças implantadas pelo partido tenham sido evoluções do que havia antes, não rupturas. Não importa que outros partidos façam defesas e tenham implantado em governos estaduais ou municipais programas muito interessantes e que inclusive serviram de inspiração para alguns dos sucessos deles próprios.
Mas mais importante, talvez: são incapazes de reconhecer que em alguns casos governos do seu partido tenham deixado de lado o foco nos pobres e feito políticas concentradoras de renda que reverteram a tendência de melhoria em distribuição de renda e miséria. Faça o que fizer, é o partido em que essas pessoas depositaram anos de esperança, não é possível que ele tenha desviado do rumo.
O PT é um partido bom, tem muita gente boa, defende algumas bandeiras muito importantes. Mas não é infalível, muito menos detem o monopólio das virtudes, da defesa dos mais pobres e da justiça social. Compreender isso, questionar as crenças sobre o partido (e os outros) são passos essenciais para levar a uma melhoria não só do partido, mas do debate público brasileiro, em que o PT sempre teve grande importância.
A atitude filosófica, proposta por Chauí quando não está defendendo incondicionalmente o partido, é passo importante para salvar o PT de si mesmo.