Uma defesa do anonimato
By Gustavo Noronha
Adaptação do texto originalmente escrito em setembro de 2011 no Observador Político.
Em tempos recentes me deparei com um grande número de protestos contra o anonimato. Eu acredito que o anonimato, tanto no mundo real, quanto na Internet devia ser um direito associado aos direitos de expressão e à privacidade, mas essa não parece ser uma opinião com muitos defensores em alguns dos círculos que eu frequento. Li no blog Trezentos a defesa de que protestos de verdade são feitos com nomes verdadeiros e aqui no Observador Político li que as pessoas precisariam usar seus nomes verdadeiros em discussões para não falarem o que querem sem consequências. Antes de continuar deixe-me esclarecer uma coisa para os observadores que como eu são tecnicamente exigentes e conceitualmente pedantes (popularmente conhecidos como chatos): nesse texto tanto anonimato de fato quanto o uso de pseudônimos são chamados ‘anonimato’, já que o que importa para meu argumento é a capacidade ou não de identificar a pessoa física por trás do que foi escrito.
Contra o anonimato
Minha intenção é fazer uma defesa do anonimato, mas antes gostaria de falar dos problemas potenciais trazidos pelo anonimato. O primeiro e principal deles é o que eu já citei no primeiro parágrafo: sem ter revelado sua real identidade a pessoa pode se sentir livre para atacar outras pessoas, o que talvez tivesse escrúpulos de fazer sob seu nome verdadeiro. Em segundo lugar, se a pessoa cometer calúnia e difamação sem usar seu nome real pode ser mais difícil reagir com uma ação legal contra a pessoa, por motivos óbvios.
Talvez por esses motivos mesmo a nossa constituição, ao mesmo tempo que garante o direito à liberdade de expressão, ressalva: vedado o anonimato. Eu acredito que em casos como esse a justiça tem alguns mecanismos que podem ajudar na identificação da pessoa e que, respeitados os direitos individuais e o procedimento legal, deve-se tentar fazê-lo, claro. Eu acredito firmemente que as vantagens trazidas pelo anonimato superam esses problemas.
Casos históricos do uso do anonimato
O anonimato foi muito utilizado na história mundial, principalmente através do uso de pseudônimos. A maioria dos autores reais dos pensamentos eventualmente vem a tona, mas não necessariamente em suas épocas. Um dos casos mais famosos talvez seja o dos chamados “Federalistas”: Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, que usavam pseudônimos, com “Publius” sendo o mais utilizado, nos 85 artigos que escreveram em defesa da nova constituição dos Estados Unidos.
Publicação de artigos políticos usando pseudônimos era uma prática comum tanto na Inglaterra quanto nos EUA, à época e pelo que eu li até hoje 2 razões principais são indicadas para esse costume: evitar que o propagador de ideias contrárias ao Estado pudesse ser perseguido politicamente e, principalmente, evitar que a associação da figura pública com as ideias fosse um fator que automaticamente descreditasse a ideia perante um grupo qualquer. Vamos explorar melhor esses dois pontos mais adiante.
Eric Arthur Blair começou a usar o famoso pseudônimo George Orwell quando se preparava para a publicação do seu primeiro livro, Down and Out in Paris and London, em que conta sua experiência vivendo como morador de rua. Ele não quis usar seu nome verdadeiro para evitar embarassos à família.
“Eu odeio X”
Imagine que você faz parte de um grupo que acredita e trabalha por uma coisa, mas sente que algumas coisas que são consenso no grupo estão erradas e precisam de crítica. Ninguém normalmente se atreve a ir contra aquelas ideias, afinal de contas “sempre foi assim” e “todo mundo concorda!”. Como fazer a crítica e não ser isolado, visto como um detrator? É o caso do Linux Hater – ele (ou ela) é um desenvolvedor de Software Livre, que usa GNU/Linux e acredita nos ideais que estão por trás, mas que faz posts bastante críticos e engraçados a respeito de decisões e consensos que considera equivocados, apontando problemas que talvez ninguém tivesse coragem de apontar usando seu próprio nome. Ele razoavelmente respeitado e ouvido, mesmo sem ninguém saber quem ele é, e acaba funcionando como um tipo de ombudsman, ajudando a comunidade a fazer a famosa e tão difícil de fazer de verdade auto-crítica.
Evitando punição
Cada época é diferente. Cada época tem suas condições políticas e seus tabus. Nós não estamos na Europa dos reis absolutos que tinham o poder de punir qualquer um que levantasse sua voz contra o Estado, é claro. Mas será que essa é a única forma de punição ou violência que uma pessoa pode sofrer? Imagine por exemplo que você vive em um grupo social de que você gosta muito, mas que é massissamente favorável a um grupo político específico – um grupo de que você pessoalmente não gosta. Por ser extrema minoria, é bem possível que você prefira não se expor à reprovação desse grupo, tenha medo de ser isolado caso expresse suas opiniões verdadeiras.
Pode-se argumentar que é falta de coragem ou qualquer coisa do tipo, mas a realidade é que nós frequentemente temos que escolher as brigas que compramos. Não arriscar causar mal estar com os sogros, o chefe, colegas de escola ou quem quer que seja não significa necessariamente desistir dos seus ideais. Poderíamos pensar em outros exemplos: cada época tem também seus tabus, aquelas ideias sobre as quais ninguém fala, que são consideradas “subversivas” ou qualquer que seja o termo da época.
Usar um pseudônimo pode ser uma forma de conseguir ter boas relações no seu meio social, mas plantar a semente de ideias novas assim mesmo. Com o tempo a semente pode brotar e pessoas mais abertas ao debate, a novas ideias, podem vir a se sensibilizar com seus argumentos e puxar a discussão (e a sociedade!) pra frente.
“Você sabe com quem está falando?”
Quando FHC fala, há ainda aqueles que tampam os ouvidos, fecham os olhos e gritam “neoliberal!”, qualquer que seja a ideia. E o mesmo acontece do outro lado: se Lula discute regulação da imprensa, não interessam quais as propostas de fato, muitos vão fechar olhos e ouvidos e gritar “censura!”, não há espaço para debate. Infelizmente nós costumamos olhar opiniões de pessoas públicas sempre com preconceitos – mesmo que inconscientemente.
O anonimato pode trazer um enorme benefício: trazer o foco para o argumento. Se você não tem pré-concepções a respeito do autor você vai ter que pelo menos ler o que ele escreveu para julgar. Você pode acabar o texto pensando “lulista!”, é verdade, mas você vai ter lido os argumentos. Mesmo achando que o texto pende para um lado, é mais difícil descreditar o autor baseado simplesmente em quem ele é.
Se, digamos, Paulo Bernardo faz uma defesa de alguma política relacionada a telecomunicações é bem possível que eu descarte o texto sem ler direito, já que ele é o responsável pelo PNBL, do qual eu não gosto e do qual discordo firmemente. Eu já ter um histórico de discordâncias com as ideias e políticas escolhidas por Paulo Bernardo pode me levar a diminuir ou ignorar argumentos que fazem sentido, mesmo que inconscientemente. Mas se eu não sei que ele é o autor do texto esse risco é diminuído – eu vou provavelmente ler atentamente e pensar sobre os argumentos, mesmo que chegue ao final em discordância.
Conclusão
Eu acredito que essas duas coisas já são justificativas suficientes para ver o anonimato como uma ferramenta importante para sociedades democráticas. Eu sei que eu mesmo tenho algumas ideias que eu não vou de jeito nenhum expor como Gustavo Noronha – não acho que vale a pena comprar a briga, até porque elas não são muito importantes nem tem nenhuma utilidade prática. Mas se eu as publicar de forma anônima eu acredito que elas poderiam contribuir com ampliar o horizonte em algumas discussões bastante interessantes.
Fiquei feliz de saber na discussão criada pelo Ubiratan Muarrek com 10 respostas sobre o Observador que o Observador Político vê em geral com bons olhos o anonimato e acredito que uma emenda constitucional para tirar aquele ‘vedado o anonimato’ da Constituição seria um avanço muito importante. E você, o que acha?