Resenha: Brasil: A nova agenda social
By Gustavo Noronha
No começo desse ano eu comprei um punhado de livros de política e economia que tinham saído havia uns poucos anos. Alguns deles organizados por Edmar Bacha, um dos mentores dos Planos Cruzado e Real. O primeiro que li foi Brasil: A nova agenda social, co-organizado por Simon Schwartzman e com textos de diversos figurões da área, como Samuel Pessoa e Fabio Giambiagi.
O livro, lançado em 2011 pela editora Livros Técnicos e Científicos, pode ser encontrado para leitura online no archive.org. Muitos dos autores foram ou são ligados ao PSDB de alguma forma e eu gostaria de conhecer contra-pontos, então se alguém conhecer algo parecido com tendências mais petistas, por exemplo, aceito sugestões de muito bom grado!
Ao livro: trata-se de textos discutindo 4 grandes temas de políticas públicas da área social: Saúde, Previdência e distribuição de renda, Educação e Segurança pública, com revisão e avaliação da história recente das políticas (da redemocratização à atualidade), identificação de melhorias em potencial e sugestões de reforma das políticas para efetivá-las.
Há muitos detalhes, debates e números nos textos de cada seção. Não vou me aprofundar nos detalhes, para isso recomendo a leitura do livro, mas vou dar uma passada rápida pelas questões que mais me chamaram atenção de cada uma delas.
Saúde
O primeiro texto faz um levantamento do histórico institucional do Sistema Único de Saúde, citando os decretos que o estabeleceram e as Normas Operacionais Básicas (NOBs) que o estruturaram. O grande desafio de tornar realidade o preceito constitucional da gestão decentralizada e as estratégias institucionais adotadas são especialmente interessantes, com estados e municípios ganhando autonomia de forma gradual, conforme demonstrassem melhorias na gestão dos recursos.
Outra discussão interessante, até pela polêmica que há a seu redor, é o papel representado pelas Organizações Sociais (OS), e sua adoção por alguns dos entes federados com melhoria tanto na eficiência do uso dos recursos quanto na qualidade de serviços prestados, de acordo com estudos citados pelo texto. Os textos apontam que a experimentação e inovação institucionais foram praticamente interrompidas a partir de 2003, embora o aumento do gasto tenha sido significativo, expandindo o acesso.
Na comparação com o resto do mundo, os textos encontram que o Brasil tem gasto e resultados em saúde que estão de acordo com seu nível de desenvolvimento. No detalhe, porém, a coisa fica mais complicada, com os pobres tendo muito menos acesso e gastando bem mais em termos proporcionais do que os mais ricos. Os 10% mais ricos (Decil 10) gastam bem menos de sua renda em termos proporcionais do que os 10% mais pobres (Decil 1), como pode ser visto no gráfico acima.
Uma das razões apontadas para isso e que tem grande discussão feita nos textos, é a existência dos princípios constitucionais de acesso integral, universal e igualitário para o sistema de saúde. O acesso integral preconiza acesso gratuito a qualquer tipo de tratamento, o que por óbvio o poder público não se propõe a realizar por questões orçamentárias. Isso leva a batalhas judiciais que obrigam o estado a fornecer a custos elevados os tratamentos excepcionais.
Para se ter uma ideia, em 2009 o gasto com medicamentos excepcionais atingiu 2,5 vezes a soma dos medicamentos básicos e estratégicos. O problema é exacerbado pelo fato de que as pessoas que mais vão à justiça são as mais esclarecidas e com mais recursos para investir nas ações judiciais, o que causa uma distorção na destinação dos recursos públicos, que passam a atender mais os mais ricos.
O mesmo vale para tratamentos de alta complexidade (e custo), que são feitos quase que exclusivamente pelo SUS. Os mais ricos acabam sendo atendidos de graça pelo SUS somente nessas modalidades, que são as que mais gastam recursos em termos absolutos, enquanto os mais pobres continuam a sofrer gastos catastróficos em saúde – o que significa dizer que gastam um percentual grande o suficiente da renda para comprometer gastos essenciais (20% é usado no texto).
Não deve ser surpresa que uma das propostas é rever integralidade, igualdade e universalidade de acesso, trazendo para o debate a questão da equidade: tratar desigualmente os desiguais, fazendo políticas focalizadas. A constituição de 88 foi fundada em princípios de igualdade e universalidade e políticas focalizadas eram vistas com maus olhos por muitos até recentemente.
Antes de o Bolsa Família, que é uma política focalizada e não universal, se tornar a menina dos olhos do governo, o PT era contrário a políticas focalizadas, por exemplo. A proposta do partido, até ali, era a de uma renda mínima universal, recebida por todos, ricos e pobres. É importante lembrar que o Bolsa Família foi uma política que veio no bojo da Agenda Perdida, recomendada a Palocci por Armínio Fraga, e foi acusada de proposta neoliberal imposta pelo Banco Mundial e de fajuta por lideranças históricas do partido. Com esse tabu rompido, talvez seja hora de falar de focalização também na saúde?
Previdência e distribuição de renda
Na questão da previdência, há uma revisão rápida de modelos previdenciários usados ao redor do mundo, seguida de uma visão geral das contas atuais da previdência, com os pesos do INSS e da previdência do funcionalismo público. Apesar de representar um gasto substancial e aposentadorias de altíssimo valor se comparadas às do setor privado pelo INSS, as aposentadorias do funcionalismo público pararam de crescer como percentual do PIB após as reformas previdenciárias feitas por FHC e Lula, não sendo o principal fator de risco de desequilíbrio futuro.
Os gastos com INSS é que aumentam ano a ano como porcentagem do PIB e a mudança rápida da pirâmide etária brasileira daquela de um país jovem para a de um país mais velho é a grande preocupação que se impõe. Isso porque a previdência brasileira é estruturada no modelo “Pay as you go”, em que os ativos de hoje financiam não suas próprias aposentadorias, mas as dos aposentados atuais. Atualmente estamos com uma proporção de 6,5 ativos para cada aposentado. Com uma proporção de apenas 2 ativos para cada aposentado prevista já para 2050, há grandes riscos para a sustentabilidade do sistema.
Mas o que chama mesmo a atenção é o tamanho do gasto previdenciário brasileiro. Nó gastamos mais do que países que tem pirâmides etárias muito mais “envelhecidas” que a nossa. Isso é um problema não só por indicar que nosso sistema se tornará insustentável rapidamente, mas por também pelo custo de oportunidade: como país em desenvolvimento que somos, gastamos em previdência muito dinheiro que poderia ser melhor investido em infraestrutura ou nas nossas crianças. Isso mesmo ainda tendo uma população bastante jovem.
Há várias razões para isso, mas a minha preferida é a da bondade excessiva da nossa previdência na questão do acesso, especialmente no caso da pensão por morte. Pego como exemplo minha mãe: quando meu pai morreu eu tinha 6 anos de idade. Minha mãe estava sem trabalhar desde que eu nasci e teve dificuldades para voltar ao mercado. A pensão foi essencial para que ela nos mantivesse até se reerguer.
Mas a pensão permanece até hoje! No meio tempo, ela se tornou professora do estado, passou em concurso do Ministério Público com um salário bastante razoável e se aposentou. Eu e minha irmã crescemos e nos tornamos independentes – ambos já temos mais de 24 anos há alguns anos e moramos em nossas próprias casas. Se fossemos aplicar as mesmas regras do Canadá, por exemplo, de acordo com o texto, diminuiríamos os gastos em 92%.
No caso dos programas de redistribuição de renda, há uma avaliação do custo e do resultado dos programas, principalmente de programas como o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e o Bolsa Família, que foram mais recentemente comparados pelo blog Brasil, economia e governo – merece leitura.
Duas discussões principais são feitas, do meu ponto de vista: a primeira é uma avaliação dos impactos colaterais de longo prazo dos programas para além da redução imediata da pobreza nas famílias atendidas. No caso do Bolsa Família, encontrando impactos positivos porém marginais em educação e nenhum impacto em saúde e trabalho infantil. A boa notícia é que não há também impacto mensurável na taxa de fecundidade, uma das críticas feitas geralmente ao programa.
Em segundo lugar, uma proposta de criação de metas para a redução da pobreza e da miséria, com a criação de uma agência externa para acompanhamento e avaliação, garantindo assim que: 1) seja possível comparar com outras iniciativas nacionais e internacionais 2) seja evitado conflito de interesses entre o executor da política e seu avaliador. A criação das metas e a medição mais padronizada são propostas que tiveram avanços recentes, com a aprovação pela Comissão de Direitos Humanos de uma lei que estabelece uma linha oficial de pobreza e a exigência de que o governo defina metas para erradicação da pobreza. Ainda é necessária apreciação pelo plenário do Senado.
Muito importante também, os textos apontam que ainda há bastante trabalho para melhorar o alcance do programa. Os números são de 2006 e podem estar bastante desatualizados, no entanto. Eles indicam que havia ainda 43,7% de pessoas elegíveis para o programa que ainda não haviam sido alcançadas, com um número significativo de pessoas não elegíveis recebendo.
Do total da população, 8,5% eram elegíveis e recebiam, 6,6% eram elegíveis e não recebiam, 8,3% não eram elegíveis e ainda assim recebiam. Esse grande número de pessoas não elegíveis recebendo pode não ser tão ruim quanto soa, porque apesar de não serem tecnicamente elegíveis ainda assim são em sua maioria muito pobres. Os textos indicam que 75% dos que recebem o programa estão dentro dos 40% mais pobres, colocando o programa entre os 10 programas de transferência de renda mais bem focalizados do mundo, junto com os programas similares do Chile e do México.
Educação
Os textos começam por fazer um apanhado dos resultados na educação dos últimos 20 anos, apontando a universalização do ensino fundamental e o avanço significativo que vem sendo feito no acesso ao ensino médio. Também mostram que o número de pessoas que termina os estudos vem aumentando significativamente através dos anos, com taxas de conclusão de 60% para o ensino fundamental e 45% para o médio.
Aponta, no entanto, que com a universalização a qualidade sofreu uma queda considerável e não conseguiu nenhuma melhora significativa desde então. Nossos estudantes continuam tendo desempenho sofrível tanto no uso do idioma quanto em matemática e ciências. 57% dos jovens de 15 anos estão abaixo do nível mínimo do PISA em leitura, 78% em matemática, 64% em ciências. Compare com os números dos EUA: 9%, 5% e 7%, respectivamente. Os números são de 2003, mas o fato de que não houve grandes melhorias nos nossos indicadores internos na última década indicam que ainda devem estar próximos da realidade.
Partindo para as possíveis políticas, investiga-se o que outros países fizeram que deu resultado. O que eu acho muito interessante é a disposição de países como os EUA de fazer experiências e avaliar resultados. Um dos programas investigados é o Teach For America (TFA), em que estudantes com ótimo desempenho acadêmico são selecionados para lecionar, passam por um treinamento específico e depois são distribuídos para escolas de áreas de baixa renda.
Aí é que vem o interessante: eles transformaram a iniciativa em um experimento, redistribuindo os alunos aleatoriamente para evitar viés pré-existente e poder assim avaliar o impacto do programa, comparando salas que receberam o professor do TFA a um grupo de controle que recebeu professor comum e medir a melhoria ou não trazida pelo programa. Conseguiram perceber que os professores do TFA tem impacto significativo no aprendizado de matemática, nem tanto na leitura.
Outros programas tratados são os chamados de Accountability, em que professores e diretores de escolas são incentivados a se comprometer com o resultado do ensino, através de premiação por bons resultados, acompanhado de liberdade na gestão. Iniciativas nesse sentido em Pernambuco, São Paulo e Minas Gerais são também exploradas.
Em Pernambuco, em particular, menciona-se os Centros de Ensino Experimental, que são parcerias público-privadas, em que uma organização do terceiro setor ou empresa gerenciam escolas públicas, com maior autonomia para gestão e remuneração dos professores. Esse também é um modelo que é investigado pelos textos no caso dos EUA, lá chamado de Charter Schools, e que parece ter dado muitos resultados positivos.
Outra coisa que sempre me chama atenção e que é discutido nos textos é o viés excessivamente acadêmico da educação brasileira. Isso se reflete numa tendência à uniformidade da educação, como se formação universitária fosse o único caminho. Também se trata das avaliações como o ENEM, que nasceram como testes de habilidades e passaram a ser testes enciclopédicos que substituem vestibular, destoando da sua intenção original de avaliar os egressos do ensino médio para subsidiar políticas públicas e seguindo a tendência à uniformidade.
Segurança
Esse é um tema que me incomoda muito e interessa pouco, então não consegui ler com tanta concentração essa seção. Uma coisa que me impressionou muito foi esse gráfico:
Segundo li em outras fontes, o aumento das taxas no nordeste e norte se devem ao aumento da bonança econômica, o que me parece fazer sentido. No caso do sudeste, alguns fatores como a redução do crescimento vegetativo da população contribuem para a redução da violência pelo simples fato de haver menos jovens, que são a fatia da população que mais causa e sofre o problema. Mas mesmo levando isso em consideração, o sudeste deve estar fazendo alguma coisa certa que merece ser copiada. É justamente isso que dizem os especialistas que eu tenho visto debater a questão na TV recentemente.
Segundo eles (e os textos do livro), São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro conseguiram diminuir substancialmente o número de homicídios, chegando a taxas de redução de até 60% em alguns casos. Segundo eles, as políticas adotadas poderiam ser usadas como base para adoção no país como um todo.
Um dos programas existentes explorados nos textos é o Fica Vivo, de Minas Gerais, que tem a intenção de tornar mais cara a ação dos criminosos, ocupando com estrutura estatal (não somente policial), os espaços de maior vulnerabilidade. O programa foca áreas em que há homicídios, procurando entrar assim que ocorre um caso, para afetar o máximo possível as gangues envolvidas no crime que ocorreu, com prisões e processos judiciais. Após a ação policial, entram as ações sociais para ocupação estatal. Embora tenha atingido 70% de redução nos homicídios na primeira área coberta, em outras o impacto foi menor, conseguindo no entanto pelo menos interromper o aumento.
Sistemas prisional e de justiça também passam pelas discussões, chamando atenção para o fato de que prisões temporárias consomem 50% dos recursos do sistema prisional e mantém pessoas encarceradas por muito tempo devido à lentidão do judiciário. Sugere-se também a maior presença dos magistrados nos presídios, conduzindo lá mesmo audiências para reduzir os significativos custos de transporte de presos até as cortes e garantir que o judiciário cumpra também seu papel de fiscalizar cumprimento das penas, contribuindo para o melhoramento da qualidade dos presídios e diminuição dos atentados aos direitos humanos.
Conclusão
O livro me serviu muito bem como apanhado geral do histórico das políticas sociais no Brasil, conquistas e problemas. Para ter uma visão geral dos temas que estão atualmente na pauta e de alguns dos debates também me parece ser bastante útil. Leitura altamente recomendada.