O governo precisa gastar menos do que recolhe?
By Gustavo Noronha
É um debate que parece sem fim e que sofre com muita confusão, a começar por muita gente falar de dívida como se fosse déficit, por exemplo, ou vice versa. Antes de entrar na questão central, então, vamos definir esses dois conceitos.
Dívida é quando você toma um empréstimo. O governo pode tomar empréstimos de várias formas, mas o principal meio usado hoje em dia é a emissão de papéis que podem ser comprados por investidores, o famoso tesouro direto. Quem compra esses títulos está emprestando dinheiro para que o governo possa usar hoje, com a promessa de receber de volta o valor, com juros, algum tempo depois. É como se você tomasse um empréstimo no banco para fazer uma compra hoje, ou pagasse uma conta ou compra com cartão de crédito, por exemplo.
Fazer dívida não significa necessariamente que você está gastando mais do que recebe: é muito comum pegar uma quantia em dinheiro para comprar imediatamente algo caro que precisaria de muito tempo juntando dinheiro. Um carro ou uma casa, por exemplo. Desde que a prestação caiba no seu orçamento, isso não causará um déficit. A necessidade do bem é imediata e há portanto uma boa razão para pagar os juros em que se incorrerá. No caso de um governo, algum nível de endividamento para que sejam feitos investimentos estratégicos em infraestrutura, por exemplo, pode ser facilmente justificável.
Já déficit significa, esse sim, gastar mais do que ganhou. É o que acontece quando você faz uma extravagância num determinado mês e entra no cheque especial, por exemplo. Você não precisa ter dívidas para ter déficit, basta que suas contas sejam maiores do que seus rendimentos, mas não é raro que comprar várias coisas a prazo, por exemplo, empilhe prestações demais e causem um déficit.
Você pode pegar empréstimos para cobrir um déficit uma ou outra vez, mas a menos que você aumente sua renda ou diminua seus outros gastos constantes para fazer tudo caber, vai chegar uma hora em que não vai ter mais jeito e você vai deixar de honrar compromissos, afinal você vai ter que pagar também esses empréstimos. Daí a propaganda da CAIXA que oferece crédito sugerir não comprometer mais de 30% do orçamento com dívidas. É quando se deixa de honrar compromissos que o crédito seca: ninguém vai querer emprestar pra alguém que pode não conseguir pagar.
Falemos do governo. O que aconteceu com o governo brasileiro em setembro desse ano, por exemplo, foi um déficit. Depois de ver o quanto o governo recebeu e tudo que teve que pagar, ficaram faltando 20 bilhões de reais para fechar a conta. A notícia é pior do que parece porque em setembro nós tivemos receita recorde, apesar da queda de arrecadação com impostos, porque houve entrada de algumas receitas a mais do Refis, que é um programa para ajudar empresas e pessoas que estão devendo ao fisco, e do leilão de 4G. Isso indica que os gastos foram enormes no mês.
Isso é um problema? Se for algo que dure por pouco tempo, não necessariamente. O governo pode simplesmente pegar mais empréstimos para fazer frente às obrigações imediatas, aumentando a dívida. O problema começa quando esse tipo de resultado se torna algo prolongado, porque a capacidade de pagar a dívida começa a ficar comprometida. Se isso acontecer, assim como acontece com as pessoas, o crédito seca: ninguém vai querer comprar papéis do tesouro nacional se houver uma chance de que o dinheiro não vai voltar.
Como pode ser visto se olharmos a estrutura do orçamento planejado para 2014 nesse gráfico que roubei de um post do Andre Bueno, nós já gastamos hoje mais de 40% do orçamento anual com juros e amortização da dívida. Com o déficit fiscal que estamos tendo esse ano, não vai dar pra amortizar nada, a dívida vai é crescer. Isso não é problema per se, como eu disse antes, mas o custo da dívida, esses 42,42% ali, vai crescer. Se não for feito um ajuste, pode chegar uma hora em que nós não conseguimos mais ter dinheiro sobrando para pagar sequer juros, quanto mais amortizar, porque o resto do orçamento está praticamente todo especificado na constituição, é muito mais difícil de mexer.
Foi o que aconteceu durante a ditadura militar, por exemplo. Com o custo da dívida aumentando rapidamente, o Brasil ficou incapaz de pagá-la e teve que declarar moratória com Sarney. Ou seja, declarou que não pagaria os juros da dívida por um período, renegociando-a de alguma forma. Isso, é claro, fez com que o crédito secasse e o Brasil não conseguia mais financiamento externo, o que é grave para um país com baixa poupança local. Esse problema só foi sanado em 1994, pela mesma equipe que implementou o Plano Real.
Mas não precisamos ir tão longe, temos exemplos mais recentes: a Argentina em 2001 deu calote na dívida soberana, que veio sendo renegociada desde então e que agora chegou num impasse, porque alguns credores não aceitaram os termos da renegociação, levando a Argentina a estar novamente atrasada nos pagamentos, o que está sendo danoso para sua economia.
Em 2008, com a falência do Lehman Brothers, o sistema financeiro internacional sofreu pesadamente e muitos estados nacionais colocaram rios de dinheiro público em bancos para salvá-los. O Brasil não foi tão afetado em razão do sistema bancário sólido e bem regulado na década de 90. O único banco que teve problemas de caixa, por fraude, foi recuperado sem dinheiro do contribuinte, como exige a legislação criada por FHC. Como disse Lula à época, “nós temos o PROER“. Ainda bem.
Com o enorme gasto de recursos para salvar seus sistemas financeiros, o próximo passo para esses países foi uma crise da dívida, que foi aumentada para financiar esses gastos. Foi aí que a Grécia quase veio a declarar moratória. É claro que no final das contas não iria acontecer, o resto da Europa tinha muito a perder se algo desse tipo acontecesse, mas o Banco Central Europeu exigiu da Grécia que tomasse medidas concretas para equilibrar as contas. Faz sentido: você emprestaria dinheiro para alguém resolver a vida se não soubesse que essa pessoa está fazendo um esforço para sair do buraco, de modo que conseguirá te pagar?
Ao contrário de nós reles mortais, o governo tem uma opção adicional para resolver seus problemas financeiros: criar mais dinheiro. Ele já faz isso de certa forma através da emissão de títulos, mas tem a opção de simplesmente criar mais dinheiro e colocar no mercado. O problema é que se você tem muito mais dinheiro entrando num mercado que não cresce em termos de produção, isso gera inflação: o dinheiro perde valor, compra cada vez menos coisas, aumentando inclusive o incentivo para o governo produzir ainda mais dinheiro.
Surpreendentemente, era assim que o Brasil funcionava na década de 80: bancos estaduais, como o BEMGE aqui em Minas, emprestavam dinheiro a torto e a direito para os estados a que pertenciam, sem se preocupar com o que tinha de fato no caixa. Quando aparecia o rombo, pegavam empréstimos com o Banco do Brasil, que também emprestava sem se preocupar com o que tinha em caixa. Quando o rombo do BB aparecia na conta movimento, que o BB mantinha no Banco Central, o BC criava mais dinheiro e preenchia. Esse foi um dos mecanismos que ajudou a criar a hiperinflação que só foi finalmente derrotada com o Plano Real.
Não é trivial perceber isso, mas a derrota da inflação passou por um número enorme de evoluções institucionais e de choques de realidade e seriedade, muito mais do que pela mudança da moeda. O saneamento dos bancos públicos, que foi parte essencial desse processo, levou anos. Veio com a extinção da conta movimento no governo Sarney, com a racionalização dos bancos públicos, principalmente os estaduais, no governo FHC, com o PROES, que foi o PROER dos bancos públicos, e depois com a Lei de Responsabilidade Fiscal.
A questão que fica é: a situação em que estamos já é assim tão ruim que se justifica o pessimismo? Eu não tenho conhecimento suficiente pra avaliar, mas pelo que eu entendo estamos ainda longe de um risco grave de moratória, desde que tomemos agora as medidas necessárias para evitar que esse problema vire uma bola de neve. Há um consenso de que é totalmente possível consertar o problema, com um esforço fiscal sério.
O problema é que não se acredita muito no compromisso desse governo com o equilíbrio fiscal. Há anos que o Ministro da Fazenda, Guido Mantega, faz previsões e promessas que não são cumpridas. Esse ano, o governo prometeu economizar 99 bilhões e já está bem claro que não vamos chegar nem perto disso em razão dos enormes gastos feitos no período eleitoral. Há muitos anos que não temos um superávit fiscal cheio, há anos que nosso balanço fiscal está cheio de contabilidade criativa.
Depois de eleita, quando já não precisava mais continuar enganando os eleitores sobre a necessidade de ajuste, como fez durante a campanha, a presidente deu entrevistas dizendo não ver as desonerações fiscais como um problema para o superávit fiscal. Segundo ela, desonerações geram poupança indireta, o que aumenta o superávit. É bom lembrar que não são desonerações amplas, mas a setores específicos, escolhidos pelo governo sem um critério claro.
Traduzindo: ao diminuir o imposto pago por um setor, esse setor economiza dinheiro podendo investir mais, gerando assim maior crescimento e aumentando a arrecadação. Só que basta olhar os índices de investimento, crescimento da economia e a arrecadação para ver que nada disso aconteceu: o investimento fez foi cair e o crescimento está próximo de 0, com arrecadação sofrendo em razão disso. O mais provável é que os empresários tenham posto o dinheiro economizado com impostos no banco pra render ou, pior ainda, tirado como lucro.
O pessimismo, portanto, não é exclusivamente resultado do déficit em que nós nos encontramos agora, mas da falta de confiança na real disposição do governo de reconhecer os equívocos de suas políticas e mudar de rumo, fazendo o esforço fiscal necessário. Torçamos para que o governo esteja atento à realidade.