Guia contra engabelação no discurso político: antes e depois
By Gustavo Noronha
Uma estratégia muito utilizada para comparar desempenho de governos é avaliar a situação antes e depois do mandato. Com a mudança, ficaria fácil ver se o governo entregou uma situação melhor ou pior que o antecessor. Embora isso possa parecer fazer sentido, a verdade é que isso desconsidera um fator muito importante: o país pode estar numa trajetória de melhoria desde antes do mandato anterior. Comparar somente o estado nessas datas específicas desconsidera a mudança que foi feita pelo anterior.
Podemos ver um exemplo simples disso quando vemos pessoas falarem que Lula e Dilma fizeram uma política de valorização do salário mínimo que deu ganhos reais consideráveis, dando a entender que isso não era o caso no período FHC. Para evitar o problema dos números absolutos, de que já tratei aqui antes, podemos usar a razão entre o salário mínimo de determinado período e o salário necessário para o período, calculado pelo DIEESE com base no custo de diversas necessidades básicas.
Os números do lado esquerdo do gráfico representam o percentual de ganho real em termos de quantos salários são necessários para comprar uma cesta básica do DIEESE. Quanto maior a barra, maior a mudança. Se ela está pra baixo do zero, o poder de compra aumentou, já que é possível comprar a mesma cesta com menos salários, se está pra cima diminuiu.
Ao lado direito vemos o número de salários necessários para comprar a cesta. É possível ver o aumento significativo no poder de compra que veio logo após o Plano Real, no primeiro ano do governo FHC. Eu peguei os dados do DIEESE e joguei numa planilha para fazer esse gráfico.
FHC começou seu mandato com um salário mínimo de R$70 e um salário necessário de R$723,82, sendo a razão entre os dois de 10,34 – ou seja, seriam necessários 10,34 salários mínimos para atingir o salário necessário. Ao final do primeiro mandato, a razão havia caído para 6,59, com um salário mínimo de $130 frente ao necessário de R$857,66, o que representa um ganho real de 36,64%. Ao final do segundo mandato, chegamos a 6,89, com um salário de R$200,00 frente ao necessário de R$1.378,19, uma queda no valor poder de compra, de 4,45%. A contribuição total de FHC foi portanto um aumento real de 33,82% no poder de compra, com a fatia mais expressiva concentrada no primeiro mandato.
Lula avançou, terminando o primeiro mandato com uma razão de 4,47 salários mínimos necessários, um aumento real de 35,13%. O salário à época foi de R$350,00 para fazer frente a despesas necessárias na ordem de R$1.564,52. O segundo mandato terminou com um aumento real de poder de compra de 2,29%, de acordo com esse critério, com um salário de R$510 frente a despesas de R$2.227,53, com uma razão de 4,36 entre os dois valores. O aumento real total para os dois mandatos foi de 36,61%, também com o aumento mais expressivo concentrado no primeiro mandato.
Até o momento (agosto de 2014), Dilma conseguiu fazer avançar o ganho salarial até a razão de 3,95, com um salário de R$724,00 e despesas de R$2.861,55 – valor que pode aumentar ou cair até o final do ano. Considerando os números de agosto, isso representa um aumento real de 9,51%. Não dá para saber qual seria seu desempenho num segundo mandato, mas fica claro que teria que ser bastante bom para conseguir se aproximar dos desempenhos dos primeiros mandatos de FHC e Lula. É possível que o segundo mandato seja melhor, mas também é possível que seja pior.
Como deve ficar claro a partir dessa análise, a política de valorização do salário mínimo não é exclusividade de governos petistas, embora a regra tenha sido colocada em norma legal por eles. Houve queda durante o segundo mandato de FHC, que foi salpicado de crises externas e internas, assim como no segundo mandato de Lula, que enfrentou a crise de 2008, depois de vários anos de bonança. Mas ainda assim, tanto FHC quanto Lula entregaram aumentos reais significativos e bastante similares (33% vs 36%) no agregado dos seus mandatos, o que joga por terra o mito de que a política de valorização do salário mínimo é uma exclusividade dos últimos dois governos.
Também dá pra perceber por que se insiste em juntar sempre Lula e Dilma, ao invés de fazer um comparativo com Dilma separadamente: o período Dilma sozinho é muito menos impactante e não compete em pé de igualdade com os primeiros mandatos de nenhum dos seus predecessores que foram considerados aqui.
Podemos fazer esse mesmo exercício com vários outros indicadores. O indice de Gini, por exemplo, que tem estado na imprensa com frequência recentemente, flutuava entre 0,60 e 0,58 pontos em fins da década de 70 e início de 80. Com a hiper-inflação dos anos 80, os índices de desigualdade variaram como em uma montanha russa – há quem diga que mais em razão da dificuldade de se medir qualquer coisa sob uma hiper-inflação do que por ter realmente tido tanta variação.
Com o final da hiper-inflação graças ao Plano Real, os índices voltaram a se estabilizar e voltaram a flutuar entre os 0,60 e 0,59 pontos. Com o início do forte crescimento do investimento social do final do governo FHC, incluindo as bolsas que depois seriam unificadas no Bolsa Família, o indice começou a sua forte tendência de queda, indo de 0,593 em meios de 2000 para 0,569 em meados de 2003. Depois da criação do Bolsa Família, ao final de 2003, o indice caiu a 0,566 em meados de 2004 e passou a cair em ritmo acelerado a partir daí, até começar a desacelerar juntamente com a economia, a partir de 2011. Há um artigo muito interessante analisando essa tendência no site “Brasil, economia e governo”.
Também é possível ver essa mesma realidade de melhora constante da qualidade de vida dos brasileiros no acompanhamento do atendimento às metas do milênio. Se você olhar os gráficos vai ver que em muitos, a forte tendência de queda começa já no início da década de 90, alguns a partir de 2001, quando os programas de distribuição de renda começaram a ser priorizados.
Nesse gráfico de taxa de mortalidade infantil aí de cima, por exemplo, que tirei do PDF indicado acima, é interessante ver como de 1990 a 2002 o nordeste, que tinha uma taxa bem maior que a das outras regiões, fechou rapidamente a diferença e seguiu a tendência de queda a partir daí.
Em suma, os governos petistas foram muito positivos para a questão social brasileira, é inegável. Mas é inegável também que os governos que o precederam, e o de FHC em particular, não foram tão ruins quanto os petistas geralmente querem fazer parecer, pelo contrário, foram comparáveis.