Marina é evangélica, logo conservadora?
By Gustavo Noronha
Ouço muita gente dizer que Marina é evangélica e que isso é um problema em si mesmo. Um dos argumentos que invariavelmente aparece nesses debates é que Marina defendeu Feliciano. Acho que discutir essa afirmativa é uma forma razoavelmente boa de resumir a questão toda.
O acontecimento que gerou essa afirmação foi um debate em que Marina foi questionada por um professor de Ciência Política sobre suas posições com relação ao Estado laico. Segundo o professor, um dos seus alunos teria ficado surpreso com a intenção do professor de ir ao debate: “mas ela é evangélica”, teria sido a restrição do aluno.
Marina começa comentando a restrição do aluno:
É engraçado que você disse, né, que alguém falou: ‘Você vai pra esse encontro? Mas a Marina é evangélica.’, né? E as vezes a gente quer combater um preconceito com outro.
Mais pra frente fala que é favorável ao Estado laico e, depois de citar vários outros políticos que segundo ela são equivocados e ateus ou católicos, argumenta que eles também não devem ser criticados por serem ateus ou católicos, e sim pelos equívocos que cometem na política. Por que tanto bafafá com ela ser evangélica, então? Ela então cita Feliciano dizendo o seguinte:
Feliciano é equivocado e não deveria estar na Comissão de Direitos Humanos não é porque ele é evangélico. É porque ele não tem tradição de defesa dos direitos humanos. É por ele não estar preparado para os Direitos Humanos.
Algumas pessoas interpretam isso como uma defesa das posturas do Feliciano. Do meu ponto de vista, não há como fazer essa interpretação a partir da fala da Marina, ela é bem clara em dizer tanto que Feliciano é equivocado quanto em dizer que ele não deveria estar na Comissão de Direitos Humanos.
Quando coloquei esse argumento para alguns amigos que dizem que Marina defende Feliciano, argumentaram que o problema é que Marina errou ao dizer que a crítica a Feliciano incluía o fato de ele ser evangélico, eram só sobre as questões mesmo. O aluno do professor é um exemplo de que esse problema existe, mas vamos supor que a maioria das críticas diferenciam as coisas: isso não muda o alvo da defesa da Marina – ela está se colocando em defesa da tolerância religiosa, não da pessoa nem das posturas de Feliciano. Não dá pra transformar uma defesa em outra só porque o alvo da defesa, em tese, não existe.
A esse último, contra-argumentam o seguinte: mas é possível desassociar essas posições da religiosidade das pessoas? Afinal de contas, é por serem religiosos que são contrários aos direitos da minoria. Ora, isso me parece contradizer o argumento que eles mesmos usaram anteriormente, que a crítica não seria à religiosidade, mas vamos ponderar.
Faz sentido colocar todos os religiosos no mesmo bolo? Leonardo Boff e Marco Feliciano estão no mesmo time? O que vejo é que há, por exemplo, muitos cristãos, tanto católicos quanto evangélicos, que toleram ou até defendem os direitos humanos e civis das minorias. Há gays cristãos, também, tenho um exemplo na família. Por mais que isso possa parecer não fazer sentido algum (pra mim não faz), a fé é questão privada de cada pessoa e a liberdade religiosa merece ser respeitada. Isso mostra, do meu ponto de vista, que ser religioso (e evangélico especificamente) não significa que a pessoa terá posições contrárias ao reconhecimento de direitos de minorias. Nem todo religioso é um Feliciano ou um Malafaia.
Do outro lado, há pessoas que são menos religiosas, que fazem só o show necessário a campanhas, como é o caso de Aécio e Dilma, por exemplo. Nem por isso eles fazem uma defesa institucional de causas progressistas. Olhando os programas de governo dos três principais candidatos, o programa da Marina por incrível que pareça fica na frente, com uma defesa de pelo menos dois pontos bem concretos para a questão dos direitos LGBT: equiparação legal dos direitos de uniões civis entre pessoas do mesmo sexo e fim dos empecilhos à adoção de crianças por casais homoafetivos.
Aécio e Dilma não tem defesa específica nenhuma nos seus programas. Com 12 anos de governos petistas, depois de 8 anos de governos tucanos, a conquista do reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo teve que vir de uma decisão do Supremo Tribunal Federal e até hoje não foi codificado na lei. Tentativas de criar políticas contra homofobia foram jogadas fora por pressões da bancada evangélica, de que Marina não é nem foi integrante e que tem como expoentes aliados de Dilma como Anthony Garotinho e Eduardo Cunha. Avanços do Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH3) foram revertidos. Ou seja, ser religioso, especialmente evangélico, não é condição necessária para representar uma política conservadora com relação aos direitos LGBT.
E aí é que eu chego na questão que eu considero a principal: se Marina se destaca positivamente em comparação aos outros dois grandes candidatos, ou no mínimo se iguala a eles, por que é praticamente só ela que sofre críticas em cima de críticas nessa questão? O que parece, infelizmente, é que Marina está certa: as críticas realmente não são exclusivamente às ideias, como querem meus amigos. São feitas especifica e principalmente pelo fato de Marina ser evangélica. É uma reação preconceituosa e contrária à liberdade religiosa.
Já estou te ouvindo dizer que Marina não é nenhuma santa e que tem várias posições questionáveis. Tem sim! Por exemplo, jogar a questão do aborto para um plebiscito é covarde e insensato – decidir direitos de minorias por votação da maioria é algo que vai contra o espírito da democracia. Dizer que “casamento” é definido pela Constituição como união entre homem e mulher é desonesto, porque pressupõe que a Constituição seja imutável, o que não é. Dizer que “casamento” é um sacramento pode fazer sentido, mas que sentido existe em um sacramento estar codificado na Constituição de um Estado laico? Se for o caso, mudemos o nome de tudo que tenha a ver com a parte civil do casamento para “união civil” e retiremos qualquer menção ao gênero dos unidos e qualquer menção à palavra casamento, ora!
Viu? Critiquei pesadamente a Marina, sem pra isso ter que citar a religião dela uma vez sequer. E posso extender críticas bastante similares aos outros dois grandes candidatos, que as merecem tanto quanto. O foco na religião cria uma cortina de fumaça que faz parecer que só Marina tem problemas no reconhecimento dos direitos de minorias, quando a verdade é que na prática ela pode representar até um passo à frente dos outros dois grandes candidatos.
Vamos parar com a hipocrisia.