Guia contra a engabelação no discurso político: competência constitucional
By Gustavo Noronha
Agradeço a Laila Damascena pela revisão!
Em posts anteriores eu tratei da falta de prioridades de investimento do governo federal em saneamento básico e mobilidade urbana. Mas imagino que alguém que leia esses posts fique com uma pulga atrás da orelha: por que o governo federal tem responsabilidade nessas questões?
De fato, enquanto eu escrevia esse post ouvi de diversas pessoas que a responsabilidade por mobilidade urbana é dos municípios, que é um dos itens em um post listando coisas que não se deve exigir do governo federal, junto com uma solução para dilemas como o da segurança pública e brutalidade policial. Parece que faria mais sentido que autoridades locais fossem as responsáveis por pensar essas questões.
Eu tenho argumentado que é inútil focar na tecnicalidade e esquecer da situação concreta que pode ser observada aos quatro cantos de que o envolvimento federal é essencial para que muitas dessas questões sejam resolvidas. E acho que cabe a pergunta: por que a coisa é assim? A resposta é provavelmente bastante complexa, como na maioria das questões. Mas eu não tenho dúvidas de que uma das principais partes dessa resposta é: a nossa federação torta.
O Brasil adotou um sistema federativo, em que teoricamente os entes federativos mantêm autonomia legislativa e orçamentária e em que há descentralização decisória e administrativa. Mas nossa federação é muito especial, porque a própria constituição limita severamente a autonomia legislativa dos entes federados, deixando com a União a maioria das competências legislativas – não é à toa que raramente se vê discussões a respeito de leis estaduais. As leis importantes para definir como as coisas funcionam de verdade estão no nível federal, o que sobra pros entes federados são leis de caráter administrativo, essencialmente.
A concentração de renda nas mãos da União
Mas se a situação é estranha na questão legislativa, ela se torna absurda na questão das competências e dos meios para fazer frente a elas. É, de fato, dos municípios a responsabilidade sobre serviços públicos de interesse local, saneamento básico, por exemplo, incluído aí transporte coletivo, como pode ser visto no item V do artigo 30 da Constituição:
Art. 30. Compete aos Municípios:
I – legislar sobre assuntos de interesse local;
II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;
III – instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;
IV – criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;
V – organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;
VI – manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)
VII – prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;
VIII – promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;
IX – promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.
Acontece que a União concentra também a arrecadação de tributos. Segundo um estudo da Receita Federal sobre carga tributária, a distribuição das receitas tributárias com relação aos entes federados foi a seguinte no ano de 2012:
<td>
69,05%
</td>
<td>
25,16%
</td>
<td>
5,79%
</td>
O que isso significa é que mais de dois terços da principal fonte de renda do poder público vai para o Governo Federal, quase três vezes mais a quantidade recolhida por todos os Estados somados, enquanto todos os Municípios ficam com menos de 6 em cada 100 reais pagos em impostos. Não é tão ruim quanto parece, na verdade, porque a Constituição também prevê um repasse de alguns dos tributos coletados pela União para Estados e Municípios, como veremos adiante. Mas não é tão melhor também.
A justificativa para tal concentração me parece fazer todo sentido. Num país com dimensões continentais e enormes desigualdades regionais, é importante pensar em uma certa redistribuição de renda entre os entes federativos. Sem investimento, os entes que produzem menos não teriam condições de se desenvolver e a ocupação territorial, que é interesse nacional, ficaria prejudicada. Os impostos ficariam todos nos Estados mais ricos e os Estados mais pobres ficariam a ver navios.
Mas o tamanho do repasse é a parte discutível. A constituição prevê que fatias de alguns dos impostos recolhidos pela União, como o imposto de renda e o IPI, sejam repassadas automaticamente a fundos: o Fundo de Participação dos Estados e o Fundo de Participação dos Municípios, que tem seus valores repartidos entre os entes de acordo com diversos critérios, posteriormente.
Para se ter uma ideia de quanto da arrecadação acaba nesses fundos: em 2013 a União arrecadou com impostos 1,1 trilhão de reais. Desses, o boletim de dezembro de 2013 do Ministério da Fazenda indica que pouco menos de 140 bilhões foram destinados aos fundos de participação, o que dá algo em torno de 13 reais para cada 100 arrecadados.
A capacidade da União de decidir onde e quanto investir
Se uma fatia maior da renda voltasse para os municípios, talvez a coisa fosse diferente. Mas esses recursos recebidos automaticamente pelos municípios não são suficientes para desempenhar todas as funções e todos os investimentos. E que bem faria toda essa arrecadação se ficasse só na conta da União, certo? Como nos lembrou a presidente Dilma, ninguém mora na União. Esse dinheiro tem que ir pra investimentos onde as pessoas estão: em saúde, educação, saneamento básico e transporte.
E é aí que a preponderância e o poder de priorização da União são sentidos. Mesmo que não seja para colocar dinheiro diretamente nas obras, só a União tem capacidade financeira suficientemente poderosa para fazer financiamentos e investimentos muito grandes. Em alguns casos, a priorização segue critérios razoavelmente objetivos – tamanho da população, projetos enviados pelas prefeituras.
Em programas como o Bolsa Família, por exemplo, as prefeituras ficam responsáveis por achar as pessoas que tem o direito, inscrevê-las e enviar relatórios de presença escolar e vacinação das crianças das famílias. Em outros, dinheiro é colocado à disposição e as prefeituras tem que inscrever projetos para serem analisados pelos Ministérios relevantes, geralmente um limite é estabelecido e os projetos são aprovados seguindo critérios objetivos também.
Mas em outros, como na construção ou até mesmo na criação de um projeto de engenharia para um metrô em uma das capitais, o governo federal tem certa liberdade para priorizar a destinação de recursos, através do controle dos órgãos financiadores. Nesses casos, a prioridade dada pelo governo federal a um determinado tipo de investimento, como o de mobilidade urbana, é determinante para a realização ou não dos projetos e das obras.
É como se os entes federados – Estados e Municípios – fossem adolescentes que receberam dos pais a liberdade de fazer o que quiserem, mas os pais se reservam o direito de decidir a maioria das questões que realmente importam e de definir em quê a maior parte do dinheiro pode ser gasto.
Mas há outras razões, provavelmente?
Certamente. Não duvido que o dinheiro para alguns investimentos tenha sido disponibilizado para municípios várias vezes e não tenha sido aproveitado pelo simples fato de o município não ter capacidade administrativa para fazer um projeto, ou simplesmente tenha perdido o prazo. Ou que a corrupção tenha sugado os recursos na ponta ou no caminho.
No meu tempo de Brasília eu aprendi que os Ministérios fazem uma infinidade de esforço para tentar ajudar os municípios a atender as exigências mais básicas dos programas federais e conseguir dinheiro. Extensões de prazo são mato, pessoas pra ajudar por telefone. E depois disso ainda tem que fazer controle e acompanhamento – a CGU está constantemente fazendo isso.
E é bom não esquecer que desavenças políticas acabam podendo também interferir – o governo federal pode atender às demandas de Estados e Municípios governados por aliados e deixar à míngua os dos adversários.
Mas acho também importante dizer que não acredito ser esse o caso na questão do metrô de Belo Horizonte, por exemplo, visto que Belo Horizonte era governada por Fernando Pimentel, petista próximo a Dilma, desde antes do governo Lula até 2009 e por Márcio Lacerda, que teve o PT como vice e como líder de governo na Câmara até as eleições de 2012, quando a aliança foi finalmente rompida. Foi nesse ano, ironicamente, que os recursos para a criação do projeto de engenharia foram finalmente liberados.
Conclusão
É muito bonito dividir tecnicamente as responsabilidades dos entes federativos e lembrar às pessoas que atentem ao que diz a Constituição, mesmo com seus candidatos e mandatários preferidos sempre prometendo que tomarão em suas mãos o problema, como vários fizeram com a questão da segurança pública, por exemplo, da mobilidade urbana e do saneamento básico também.
Essas promessas são não mais do que o reconhecimento da dependência que Estados e Municípios acabam tendo do Governo Federal. Não é a toa que há quem defenda uma reconstrução do pacto federativo, de modo a dar aos entes federados capacidade real de cumprir suas atribuições constitucionais, sem tutela federal. Se essa é uma boa ideia, isso é um assunto que merece uma discussão só pra o tema e eu não sei se tenho opinião formada.
O fato é que existe uma assimetria entre o que a Constituição dá de responsabilidades e de capacidades para os entes da ponta e que tentar eximir o Governo Federal da sua necessária atuação nessas questões acaba sendo só uma forma de tentar esconder o elefante que está na sala.