A PEC 37 e a criação de espantalhos
By Gustavo Noronha
A PEC 37 e minha posição sobre ela
Uma das causas que acabou sendo incluída na pauta dos protestos que varreram o país foi a campanha contra a aprovação da PEC37. Alguns amigos meus, favoráveis à aprovação da PEC, chamaram a atenção para o fato de que muita gente foi gritar contra a PEC37 mesmo sem saber do que se tratava. Outros convidaram as pessoas a ler a PEC – com frequência dizendo terem mudado de opinião depois de tê-lo feito. Eu era contrário à sua aprovação e, claro, já tinha lido a PEC antes de adotar essa posição, mas achei muito construtiva essa postura dos amigos de conclamar as pessoas a entender do que estão falando!
A PEC – Proposta de Emenda Constitucional – tinha o objetivo de tirar do Ministério Público o amplo poder de investigação. Há um certo vácuo na definição de responsabilidades das diversas instituições e a PEC procurava sanar esse vácuo incluindo o seguinte parágrafo no artigo 144:
A apuração das infrações penais de que tratam os parágrafos 1º e 4º deste artigo, incumbem privativamente às Polícias Federal e Civis dos Estados e do Distrito Federal, respectivamente.
A palavra “privativamente” faria com que o Ministério Público perdesse a prerrogativa de proceder investigações próprias para apurar infrações penais, ficando restrito a investigar ilícitos não criminais. Isso é ruim? É bom? Do meu ponto de vista, pelo menos, é bom, no geral, que o Ministério Público possa investigar. Em muitos casos o MP tem se mostrado um defensor ardoroso da sociedade e dos direitos dos mais pobres e mais fracos.
Mas será que essa liberdade de investigação deve ser ampla e irrestrita? Eu acho que não. Há um sem-número de casos em que promotores abusaram do poder que está nas mãos do MP para perseguir adversários políticos, como foi o caso de Eduardo Jorge, empunharam bandeiras moralistas, de atraso e conservadorismo, atacando minorias. Mas ir de um extremo ao outro: do poder quase irrestrito de investigação que permite esses abusos, à impotência praticamente completa de empreender investigações? Isso não me parece uma solução desejável, daí minha posição contrária à PEC37.
A criação do espantalho e a banalização da discussão
Mas de onde foi que veio tanta gente contrária a algo que nem sabiam o que é? Uma das razões, não tenho dúvidas, é o fato de algum de seus detratores terem cunhado o nome de “PEC da impunidade” para se referir à PEC. Essa estratégia, infelizmente usada à exaustão nas discussões políticas, consiste no que se convencionou chamar de “falácia do espantalho”. Ao invés de fazer uma discussão aprofundada e embasada a respeito de todas as questões que estão envolvidas num tema, é muito mais fácil dar à questão uma cara mais feia, que seja mais fácil de contrapor.
Se for se tentar uma discussão balanceada a respeito das atribuições do MP, seus objetivos, seus meios, assim fica difícil convencer quem tem preguiça. Aí é que entra o brilhantismo da criação do espantalho. Existe alguém que é a favor da impunidade? Talvez alguns criminosos o sejam, mas ninguém em sã consciência se colocaria a favor de algo que simbolize a impunidade. Então pronto, colocamos o nome de PEC da impunidade na PEC37 e de repente ficou muito mais fácil conseguir adesões para a luta contrária. Para aqueles que pelo menos querem um resumo de 5 palavras você explica que ‘a PEC impede o Ministério Público de investigar políticos corruptos’ e pronto.
Mas isso é obviamente uma falácia. O MP perder direito de investigar por conta própria não significa nem que não haveria investigação (a polícia e outros órgãos continuariam tendo competência para tal), nem que haveria (maior) impunidade. A estratégia é brilhante porque ela esconde todas as camadas de complexidade da discussão numa dicotomia falsa, mas muito simples: ou você quer o MP investigando, ou você quer impunidade.
Essa mesma estratégia é utilizada na enorme maioria das discussões políticas. Quando se fala sobre os leilões de campos de exploração de petróleo agora, por exemplo, as pessoas que são contrárias ao envolvimento da iniciativa privada tentam da mesma forma criar o espantalho dicotômico falso e simplista com palavras como “entregar”, normalmente seguidas de “riquezas nacionais” e “capital estrangeiro”.
As discussões mais aprofundadas a respeito de como os investimentos são feitos, de como se concorre pelo direito de exploração, de que regulações existem, que tipos de controles e auditorias estão à disposição do Estado, o que o Brasil ganha ou perde com a participação da Petrobrás em todos os contratos de exploração, todas essas questões são escondidas atrás de uma nuvem de fumaça que transforma a questão em uma decisão entre entregar ou não as riquezas naturais brasileiras ao capital estrangeiro. Tem como ser a favor disso?
Uma discussão de mais alto nível é possível?
O que o uso constante desse artifício falacioso consegue é empobrecer a discussão. Ficamos defendendo posições extremadas contra algo que sequer entendemos como funciona. Ao invés de debatermos as questões, debatemos os espantalhos construídos para representá-las. Eu acho que é utópico esperar que a grande massa da população compreenda com profundidade todos os tópicos do debate nacional e o resultado desses “debates” empobrecidos são bons argumentos pra mostrar como mesmo a democracia precisa de alguma mediação – a democracia direta, exercida por gente que não entende os assuntos em debate, só tem como dar resultado ruim.
Mas isso não significa que a população em geral seja incapaz de tomar parte em alguns desses debates e inclusive de aprofundar em alguns que sejam mais importantes. A implantação do plano real, com conceitos complexos como uma moeda virtual, por exemplo, foi tirada de letra pela nossa população. Exigiu dos envolvidos em sua criação e implantação um trabalho constante de comunicação, explicação. FHC e os diversos economistas que participaram do Plano Real estavam diariamente na TV, dando entrevistas, explicando, distrinchando, tirando dúvidas – até a oposição da época foi obrigada a reconhecer a “diferença” que representava essa postura comparada à adotada nos planos anteriores.
O governo do Rio Grande do Sul, do petista Tarso Genro, tem explorado com sucesso a ideia de consultas públicas que permitem à população não só elencar as prioridades dentre inúmeras propostas, como também sugerir outras intervenções nas políticas públicas que nem sequer tenham sido imaginadas pelo poder público, dando um exemplo de como a democracia pode ser mais participativa, mesmo quando mediada. Resta saber se os encaminhamentos serão dados para tornar essa participação efetiva, mas já é uma experiência interessante.
Do mesmo modo, partidos como o PT faziam no passado uma discussão grande, distribuída em inúmeras organizações de base que se preocupavam em colocar em debate as grandes questões do país e as pequenas questões locais. Em tempos recentes os partidos parecem ter caído numa certa sonolência; deixaram pra lá a conversa com a sociedade como um todo e transportaram sua atuação quase que totalmente para as casas legislativas e os poderes executivos. Imagino que parte dessa perda tenha sido causada justamente pelo fato de o principal partido que adotava tais práticas ter se tornado situação em nível nacional.
Eu acredito que é possível que o nível dos debates na sociedade melhore. E eu acho que os partidos poderiam ter um papel fundamental nisso: tirar as negociações e as defesas das tribunas e vir debater as questões com a sociedade. Elaborar programas, cartilhas, defender posições sim, por quê não? Os partidos se transformaram em geléias que mudam de postura e defesa conforme as conveniências; definir mais claramente posições seria uma das formas de tornar possível novamente às pessoas se identificarem com um partido mais que com outro.
Fomentar o debate sobre essas grandes questões nacionais – transporte, energia já seriam uma ótima forma de constratar com a tendência autoritária de fazer as coisas quase que por decreto que tem sido a grande marca do governo Dilma.